O acesso ao ensino superior, durante muito tempo, foi um sonho distante para muitos estudantes das periferias, das cidades do interior e de camadas sociais mais humildes. Dados do Mapa do Ensino Superior no Brasil de 2022 apontam que apenas 17,8% do total de jovens de 18 a 24 anos estão matriculados nas universidades públicas ou privadas. Quando se fala em minorias – negros, mulheres, indígenas, público LGBTQIA+ – essa dificuldade é ainda maior.
A Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) nasceu no interior do estado, vocacionada a formar estudantes que dificilmente teriam condições de ir para as capitais. Com esse perfil social, a Instituição saiu na vanguarda e comemora 20 anos da implantação de cotas sociais, por meio da Lei Estadual no 8.258, de 27 de dezembro de 2002, com reserva de metade das vagas para estudantes que estudaram todo o ensino em escolas públicas.
Outras cotas surgiram posteriormente, como a Lei Estadual no 9.696, de 25 de fevereiro de 2013, com reserva de 5% das vagas para pessoas com deficiência e a Lei Estadual no 10.480, de 30 de janeiro de 2019, que incluiu uma subcategoria na Lei de Cotas Sociais, com reserva de vagas para candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas.
Quando estou no atendimento no Hospital Regional Tarcísio Maia, muitas pessoas me pedem para chamar o responsável. Não me enxergam como médico em formação.
Olímpio Magalhães
Pernambucano, Olímpio Magalhães, aluno do curso de Medicina, ingressou na Uern em 2020, logo após a Universidade aprovar as cotas étnico-raciais voltadas a pretos, pardos e indígenas.
O gosto pela Medicina nem fazia parte do sonho de Olímpio, o que surgiu só depois com o estudo e com a prática. Hoje ele afirma que pretende ser endocrinologista. Mas nem tudo é um sonho. Exaltando sua negritude, o jovem percebeu que eram poucos os estudantes negros naquele curso, tanto nas salas de aula como nas placas das turmas graduadas.
Os livros também não traziam essa referência. “Os negros nos livros de Medicina aparecem como cadáveres”, afirmou Olímpio. O racismo estrutural mostra seu enraizamento em outros aspectos. “Quando estou no atendimento no Hospital Regional Tarcísio Maia, muitas pessoas me pedem para chamar o responsável. Não me enxergam como médico em formação”.
Esse relato foi dito pelo estudante para uma mulher que conhece bem essa luta: a professora e pesquisadora Zélia Madeira, doutora honoris causa da Uern. Estudiosa e militante das causas raciais, ela deu importante contribuição na política de cotas da Uern e foi reconhecida de forma justa no dia 28 de setembro de 2022, na solenidade de aniversário de 54 anos da Uern.
A conversa entre Zélia Madeira e Olímpio Magalhães ocorreu numa tarde de setembro, no gabinete da reitora Cicília Maia. Encontro de gerações que se reconhecem na luta e trazem a potência de buscar no conhecimento e na ancestralidade, a identidade forte e resistente de seus antepassados.
A implementação das cotas é importante para a diversidade e a inclusão racial. Minha trajetória mudou com o ensino superior. E é oportunizando o acesso à universidade, que vamos contribuir com políticas de defesa à diversidade e inclusão.
Zelma Madeira
Durante a entrega do título de Doutora Honoris Causa, Zelma Madeira lembrou da sua trajetória de luta, como mulher negra, na promoção da diversidade e igualdade racial, sobretudo na defesa do acesso ao ensino superior às classes historicamente vítimas de racismo estrutural e discriminação racial.
“A maioria das mulheres negras é vista pela sociedade como destinada ao trabalho doméstico. Essa imagem negativa da mulher negra, da pessoa negra, precisa ser mudada, com ações inclusivas, com o acesso ao conhecimento, pesquisas e ações de extensão. Como docente, nossa luta vai além dos muros das universidades. Me honra estar recebendo esse título que não é só meu, é de todas as mulheres negras”, disse.
A pesquisadora destacou ainda a felicidade de ter participado junto com a Uern no debate para a implantação da política de cotas étnicos-raciais. “A implementação das cotas é importante para a diversidade e a inclusão racial. Minha trajetória mudou com o ensino superior. E é oportunizando o acesso à universidade, que vamos contribuir com políticas de defesa à diversidade e inclusão”, complementou.
Na ocasião, a professora Zelma Madeira recebeu um exemplar do livro “Ações Afirmativas na Uern: coletânea de textos jurídico-normativos”, organizado pelos docentes Eliane Anselmo, Fabiano Mendes e Ivonete Soares, resgatando toda a trajetória de conquista das cotas na Uern. O estudante Olímpio Magalhães entregou o exemplar a Zélia Madeira.
Nesta obra, a reitora Cicília Maia fala sobre a importância da pauta racial. “Não tenho o exato lugar de fala, mas trago a empatia e a percepção do quanto a sociedade precisa reparar todos esses danos causados por gerações contra as minorias negros, mulheres e mulheres negras, em especial. E nisso, o dever de me posicionar é também exercido como direito. Mas é preciso que nunca esqueçamos: fazer justiça social e colocar em prática a equidade é um compromisso que devemos assumir coletivamente”, escreveu a reitora no prefácio, citando ainda outras iniciativas que visam à inclusão, como a instituição, no ano de 2021, no calendário acadêmico, o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, no dia 20 de novembro; além do Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher, no dia 25 de novembro; e o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, no dia 3 de dezembro.
“No entanto, precisamos avançar nas pautas afirmativas. Nessa direção, ainda em 2022 passamos a contar com uma diretoria específica que iniciará todo um trabalho voltado à diversidade, ao acompanhamento de estudantes cotistas e com o objetivo de ampliar nossas ações. A Diretoria de Ações Afirmativas e Diversidade da Uern vem reforçar esse compromisso coletivo em fazer da Uern uma universidade socialmente referenciada, inclusiva, includente, plural, diversa, humana e afrorreferenciada”, afirma Cicília Maia.
A pró-reitora de Ensino de Graduação, Fernanda Abreu, afirma que o estabelecimento e a consolidação da política de cotas no âmbito da Uern é parte integrante de um projeto institucional.
“Um projeto que fomenta a inclusão e a efetivação dos Direitos Humanos aliados ao reconhecimento e à proteção da diversidade no âmbito acadêmico. A história desse processo em nossa comunidade é reflexo também da ampliação de seu referenciamento social amplo e de seu compromisso com uma sociedade mais justa e igualitária”, analisa Fernanda Abreu.
Ações Afirmativas
As cotas assumem uma função social fundamental porque elas proporcionam aos jovens a oportunidade de transformarem sua realidade, das suas famílias e dos lugares onde estão inseridos.
Atualmente, a Uern reserva 50% das vagas totais para cota social, das quais 58% são para pretos, pardos e indígenas.
Também há a reserva de 5% das vagas para pessoas com deficiência (PcD) e o argumento de inclusão regional, com bônus de 10%, voltado ao candidato da ampla concorrência que tenha cursado integralmente os ensinos Fundamental e Médio em escolas públicas ou privadas localizadas no Rio Grande do Norte.
Criação da Diretoria de Ações Afirmativas e Diversidade
Criada em novembro de 2022, a Diretoria de Ações Afirmativas e Diversidade (DIAAD) representa um avanço na consolidação da Uern como um espaço vestido de povo, de todas as cores, raças e nacionalidades. O objetivo é promover e concretizar políticas de promoção de igualdade e o reconhecimento das diferenças e diversidades na Instituição.
A Diretoria tem como foco realizar os procedimentos de heteroidentificação para o acesso às cotas étnico-raciais na Uern; o acompanhamento dos grupos de estudantes cotistas; a sensibilização e a mobilização da comunidade universitária e a sociedade em geral para a convivência cidadã com as várias realidades presentes na diversidade social relacionadas a gênero e sexualidade, à tradição das culturas, etnia, refúgio e migrações; bem como a promoção de ações que possibilitem a reversão do cenário de discriminação das populações às quais tais políticas se destinam.
Ressaltando o pioneirismo da Uern na criação de um setor específico voltado para as ações afirmativas, a professora Dra. Eliane Anselmo, titular da DIAAD, comenta que “a Diretoria tem uma missão muito importante de dialogar com os setores da Universidade e comunidade, a fim de promover debate sobre a diversidade”.
Além da docente, a Diretoria é formada pelo professor Tobias Queiroz (no eixo de Relações Étnico-Raciais, Diversidade e Interculturalidade), pela professora Suamy Soares (eixo de Relações e Identidade de Gênero, Direitos das Mulheres e da Comunidade LGBTQIA+) e pela técnica Taciane Medeiros.
Na inauguração da sala do DIAAD, no Centro de Convivência do Campus Mossoró, em 18 de novembro passado, o estudante Genderson Costa, do coletivo Enegrecer, ratificou, na ocasião, que o momento consolidou a Universidade como referência na política em prol da diversidade.
Emocionada, a reitora Cicília Maia destacou que a materialidade da Diretoria é fruto de muito trabalho, de várias pessoas ao longo de anos. “A DIAAD vem abrir portas para grupos sociais que sempre tiveram as portas fechadas. É mais um instrumento para fortalecer a nossa missão coletiva na promoção da justiça social”, enfatizou.
A coordenadora da Secretaria Estadual das Mulheres, da Juventude, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, Janaína Lima, que representou o Governo do Estado, enfatizou que a Diretoria é um instrumento para enfrentar as desigualdades sociais.
O presidente do Comitê Estadual Intersetorial de Atenção aos Refugiados, Apátridas e Migrantes do Rio Grande do Norte (Ceram/RN), Thales Dantas, também representante do Governo do Estado, ressaltou que a Diretoria é fundamental para potencializar a política de inclusão.